Prólogo: Da China ao Brasil, o mundo está em luta

por Timo Bartholl


[Ralf Ruckus/Timo Bartholl (orgs.): China. Avanço do capital e revolta na nova fábrica do mundo. Rio de Janeiro, 2014]

O nosso saber acerca das lutas sociais que ocorrem ao redor do mundo depende, antes de tudo, de fluxos de informação sobre os mesmos. É evidente que a mídia corporativista e também as mídias estatais, quando tratam de notificar resistências populares, têm um ponto de vista que parte da lógica de defesa do sistema tal como ele é: um capitalismo globalizado baseado em sistemas de representações políticas mais ou menos democraticamente legitimadas que, sobretudo, garantem o funcionamento do sistema para o capital que, de forma incansável, se movimenta pelo mundo em busca de lucro e mais lucro. Onde há avanços desse capital global, as contradições intrínsecas à relação capital-trabalho (e capital-não trabalho) desencadeiam lutas dos de baixo contra as forças e formas que garantem sua exploração.

Em agosto do ano passado tive a oportunidade de participar de um encontro internacional de troca organizado por uma rede de companheir@s libertários, comunistas e anarquistas, onde escutamos relatos e avaliações da Primavera Árabe, das tomadas das ruas no sul europeu e de outras partes do mundo. Foi um momento onde pude compartilhar a experiência das históricas jornadas de junho de 2013 que encheram com gritos de indignação e revolta as ruas pelo Brasil afora e que colocaram o Brasil no mapa-múndi das grandes erupções deste século XXI. Os momentos recentemente vividos nas ruas do Rio de Janeiro levaram a uma mistura de sentimentos: um certo alívio por ter somado milhares num grito mais que digno e necessário em meio a um dia a dia nas grandes cidades brasileiras em que cada aumento de gasto em obras parece equivaler a uma piora das condições de vida da maioria que nela trabalha, se movimenta e vive; uma certa esperança, ao receber relatos de tantos lugares e contextos nos quais os de baixo deram ideia de sua força – que esses movimentos possam crescer, se inter e multinacionalizar cada vez mais; e também uma profunda preocupação, pela disposição dos agentes desse sistema dito, e muitas vezes sentido, “único” de aumentar o grau de violência em sua reação às múltiplas formas de resistência, até onde for necessário. Uma chacina na Maré no Rio de Janeiro tinha acabado de demonstrar a capacidade (e necessidade…) mortal de autodefesa desse sistema violento, cuja sobrevivência tanto depende da exploração e da miséria da maioria.

Se o lema “O gigante acordou”, que ganhou certa fama no Brasil durante as jornadas de junho de 2013, é de ser rejeitado de antemão pelo seu teor nacionalista-patriotista, ele também corresponde apenas a uma realidade parcial de segmentos da sociedade – as classes mais abastecidas. Indígenas, quilombolas, campesinos, favelados, ribeirinhos, extrativistas, trabalhadores e tantos outros nunca “dormiram” e sempre estiveram, com mais ou menos intensidade, em luta no Brasil. Se, na percepção pública, essas lutas populares sempre ganharam menos visibilidade por serem abafadas e escondidas do conjunto da população pela mídia corporativista, as lutas dos trabalhadores chineses certamente sofrem, tanto na China e mais ainda a nível internacional com o mesmo ou até um grau maior de “invisibilização”. Pouco sabemos, não por que não queremos saber, mas por que pouco chega até onde estamos, e, vale dizer apesar de evidente, o que chega mais nos desinforma do que informa.

Foi este contexto que tornou importante e especial o momento quando, num período de troca entre companheiras e companheiros de diversos países que viveram lutas de grande visibilidade internacional na última década, o companheiro Ralf Ruckus, do coletivo gongchao, trouxe uma perspectiva crítica da luta dos trabalhadores na China, um país que ele visita há dez anos e cujo idioma ele domina. A dinâmica do avanço do capital na China tange e envolve centenas de milhões (!) de chineses e é de tamanha força e dimensão que, mesmo olhando de um país de dimensões continentais como o Brasil, é difícil de se imaginar. Uma dinâmica que condiciona lutas cuja alta intensidade parece ser diametral à sua visibilidade internacional. Um regime autoritário que controla os meios de comunicação nacionais e conta com a colaboração da mídia corporativista internacional não vê com bons olhos quando as contradições e as revoltas da China das reformas ganham visibilidade, seja dentro ou fora da China. É contra esta correnteza que se propõe a nadar o coletivo gongchao, buscando espalhar informações e análises críticas de uma realidade de luta que tão pouco conhecemos, e tanto precisamos conhecer melhor. Os textos e as análises do coletivo trazem narrativas e análises a partir da perspectiva da realidade vivida das classes populares e das trabalhadoras e trabalhadores chineses, cujas vidas no novo coração do capitalismo globalizado sustentam as suas batidas que cada vez mais nutrem as artérias do mundo com bens de consumo produzidos em relações de super-exploração de sua mão de obra. É essa super-exploração que as trabalhadoras e os trabalhadores chineses enfrentam e contra a qual lutam constantemente, e é das conquistas e derrotas dessas lutas que tratam os textos desta coletânea.

Além de trazer informações, análises de contextos de outros lugares, sempre nos convidam em repensar e rever as nossas realidades. É neste sentido que a luta dos trabalhadores na China também muito interessa, já que o Brasil pós-jornadas e pré-Copa viveu intensas lutas de trabalhadores – rodoviários em Porto Alegre, metroviários em São Paulo e garis no Rio de Janeiro, e tantos outros, muitas vezes também invisibilizados, como a luta dos trabalhadores da construção civil ou do COMPERJ aqui no Rio. Lutas de trabalhadores que colocam em xeque “velhas” formas de um sindicalismo engessado em relações burocráticas e de cooptação, e que buscam novas formas de luta, contestação e auto-organização dos trabalhadores. Nesse sentido, talvez, saber mais das lutas de trabalhadores do grande irmão dos países BRIC pode, quem sabe, inspirar e contribuir com o repensar e retomar de uma perspectiva revolucionária do sindicalismo no Brasil.

O esforço de tornar acessível a quem lê e fala português este conjunto de textos, além dos próprios autores, em sua maioria investigadores e militantes, foi possível graças ao trabalho e à disposição do companheiro Ralf Ruckus e do coletivo gongchao, aos companheir@s tradutores de Portugal e do Brasil, e a Isabella Mota e Luís Octaviano, que estão se dispondo com sincera dedicação de fazer da editora Consequência uma ferramenta para circular conhecimento que possa nutrir uma multiplicidade de resistências num mundo que certamente está em luta e não deixará de estar tão cedo.

Boa leitura e bons debates dos textos!
Rio de Janeiro, 10 de setembro, 2014

 

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