Prefácio: China, avanço do capital e revolta na nova fábrica do mundo

por Ralf Ruckus


[Ralf Ruckus/Timo Bartholl (orgs.): China. Avanço do capital e revolta na nova fábrica do mundo. Rio de Janeiro, 2014]

A China passou, nos últimos trinta anos, por transformações econômicas, políticas e sociais profundas. Entretanto, se por um lado as reformas realizadas pelo governo do Partido Comunista Chinês desde 1978 e o subsequente “milagre econômico” têm sido amplamente divulgados pela mídia internacional, pouco tem se falado e divulgado das consequências sociais e econômicas das mudanças para a classe trabalhadora e menos ainda de suas lutas por melhorias de sua situação. Este livro tem como objetivo dar ao leitor a possibilidade de conhecer mais a fundo o andar do processo de reformas capitalistas na China e compreender o papel fundamental das lutas sociais que o acompanham. Trata-se de uma coletânea de artigos escritos, traduzidos e (re-)editados por gongchao, um coletivo de pesquisadores militantes comprometidos com a causa dos trabalhadores da Europa, América do Norte e Ásia (http://www.gongchao.org). Os artigos abordam aspetos importantes dos processos de transformação e luta, tais como a recomposição da classe trabalhadora chinesa, a luta dessa nova classe de trabalhadores e a dimensão global de suas lutas, a migração, a situação das trabalhadoras, a onda de greves do ano 2010, os problemas políticos das estratégias de reformas do governo e a questão do potencial de uma revolução social. Mais material sobre e para além destes assuntos o leitor interessado encontra no site do coletivogongchao.

A ascensão econômica da China – nos anos 1970 considerado um país pobre e com baixos índices de desenvolvimento econômico –, que levou o país a ser a segunda maior potência econômica mundial nos anos 2000 não meramente resultou de estratégias capitalistas mais bem aplicadas pelo Partido Comunista Chinês, mas se baseou sobretudo na chance histórica reconhecida pelo partido de reformar o país e seu sistema político-econômico para, com isso, garantir sua manutenção no poder. Ao mesmo tempo em que, nos anos 1960 e 1970, a crise do sistema socialista chinês se agrava, o capital global lança um contra-ataque a uma onda de lutas da classe trabalhadora nos países centrais, realocando boa parte de sua produção fabril. Em um primeiro momento essa realocação aconteceu em países da América Latina e nos “tigres asiáticos” (Coreia do Sul, Taiwan, Hong Kong, Singapura), mas a partir dos anos 1980 e com mais destaque nos anos 1990 a realocação de amplos setores produtivos chegou a ocorrer no litoral leste da China. Uma coalizão até então difícil de imaginar se formou entre o Partido Comunista Chinês com capital privado e estatal internacional e novas zonas econômicas especiais, e a proletarização de centenas de milhões de migrantes chineses tornaram a China a “fábrica do mundo” até o final da década de 1990.

O artigo “Proletarização e composição de classe na China”, de Ralf Ruckus, analisa as três fases de reformas dos anos 1978–1992, 1992–2002 e 2002 até os dias de hoje como etapas distintas no processo de recomposição das classes de trabalhadores urbanos e migrantes. A antiga classe trabalhadora se decompôs devido à reestruturação e diminuição das indústrias estatais e ao acabar com o iron rice bowl (tigela de arroz de ferro), termo que se refere a um conjunto de garantias sociais vinculadas ao emprego para a vida nas empresas do Estado, com acesso a segurança no emprego, como ordenado fixo e benefícios sociais.

Em “A geração dos trabalhadores insatisfeitos”, o coletivo wildcat foca no funcionamento da estrutura social da China socialista, os danwei ou empresas socialistas, sua reestruturação nos anos 1990 e as lutas dos trabalhadores urbanos estatais contra o ataque às suas condições de vida.

Nesta mesma época, a industrialização e a migração campo-cidade levaram à constituição de um mercado de trabalho segmentado, à composição de uma maciça classe de trabalhadores migrantes composta por 200 a 300 milhões de trabalhadores explorados por capital estrangeiro e nacional, e controlados e reprimidos pelo Estado através de duras medidas governamentais de controle político e social.

Em “Rostos da migração”, o coletivo wildcat descreve as formas de regulamentação estatal da migração (hukou), a situação dos trabalhadores migrantes nos seus lugares de trabalho e suas lutas em termos mais gerais, enquanto que Hao Ren et al., em “A sobrevivência e as lutas coletivas dos trabalhadores nas empresas privadas do litoral chinês desde os anos 1990”, analisam os desdobramentos das lutas em uma das principais regiões do desenvolvimento capitalista e da proletarização: o delta do Rio das Pérolas levando em consideração as condições de trabalho, formas ocultas de resistência, a crise econômica do ano 2008 e a resposta dos trabalhadores a ela.

As lutas dos trabalhadores migrantes reivindicando melhorias aumentaram de maneira significativa durante a década de 2000 e chegaram a um auge em 2010. São lutas que chegaram a ser conhecidas como “lutas de classe sem organização da classe” por serem lutas da classe trabalhadora ao mesmo tempo em que organizadas de formas autônomas, ou seja, sem organizações institucionalizadas que representassem os trabalhadores em luta. As resistências envolvem formas não legalizadas de luta, tais como greves selvagens de trabalhadores industriais em locais de trabalho de média ou grande escala, revoltas maciças de trabalhadores migrantes assalariados e desempregados, manifestações, “sit-ins” (bloqueio de ruas ou praças como forma de ação direta não-violenta), bloqueios de rodovias, e formas cotidianas de resistência como lentidão intencional no processo produtivo, ausências não justificadas, ou sabotagem. Como um exemplo, o artigo “10 Parágrafos contra 1 maçã podre – iEscravidão na Foxconn” escrito por amigos de gongchao descreve a situação e as lutas dos trabalhadores na maior manufaturadora por contrato de produtos eletrônicos no mundo, que conta com 1,4 milhões de trabalhadores na China: a Foxconn. Essa megaempresa fabrica para marcas como Apple, Dell e Microsoft, e ganhou atenção internacional após uma série de suicídios de seus trabalhadores em 2010, que deu sequência a uma campanha contra a exploração nas fábricas da Foxconn.

Em “Despertar coletivo e ação dos trabalhadores chineses: a greve dos trabalhadores da indústria automobilística em 2010 e seus efeitos”, Wang Kan descreve a onda de greves de trabalhadores migrantes no ano de 2010, a maior desde o início da época de reformas. O início foi dado numa fábrica da Honda na cidade de Foshan, no sudeste da China, e que se espalhou pelo litoral e também alcançou áreas do interior do país. Wang Kan discute esta onda de greves focando nas formas de organização dos trabalhadores, o papel do Estado, dos sindicatos e da mídia.

Industrialização, migração e proletarização têm levado a profundas transformações das relações sociais na China. Como em outros lugares, a migração é marcada por um processo de mobilidade forçada a serviço de interesses do capital (exercer trabalho assalariado ou precarizado onde quer que capital o precise), mas ela também envolve elementos de mobilidade autônoma dos trabalhadores como meio para escapar de miséria, exploração e o patriarcado nas áreas (em sua maioria rurais) de origem. Na China, conflitos nas relações sociais com base em questões de gênero, geração e classe marcadas por lutas por mais liberdade social e maior controle sobre a própria vida permeiam os processos de migração. Em “Gênero e classe na China: gerações de mulheres proletarizadas desde 1949”, Ralf Ruckus descreve três gerações de mulheres trabalhadoras, a primeira geração influenciada pela “libertação” de 1949, a segunda socializada durante a Revolução Cultural depois de 1966, e a terceira crescendo durante os anos das reformas depois de 1978. Enquanto uma forte influência maoísta marcou a primeira geração, as subsequentes focaram cada vez mais na luta contra o patriarcado e questões de gênero em geral.

A abrangência, importância e escala da luta dos trabalhadores e das trabalhadoras na China que os artigos deste livro evidenciam, tais como a luta do campesinato1, fazem entender a ameaça que essas lutas apresentam não somente ao Partido Comunista da China, mas também à divisão global do trabalho. O modelo de trabalho barato como motor do boom da economia chinesa e como espinha dorsal da produção global providencia produtos de consumo de baixo preço para outras regiões ao redor do globo e fez com que países centrais pudessem levar em diante programas de austeridade e cortar os salários de seus próprios trabalhadores. Poderá este modelo chegar ao seu fim? Em “A China como epicentro emergente da agitação laboral no mundo”, Beverly Silver e Zhang Lu discutem a dimensão global da luta dos trabalhadores na China, as tentativas do capital de sair da crise de acumulação através da realocação de capital, e os conflitos que resultam do movimento desse capital.

Para concluir esse panorama das lutas na China, amigos de gongchao, em “O beco sem saída da esquerda vs. crítica destrutiva – As políticas contrainsurrecionais na China e possíveis respostas” apresentam um olhar geral sobre o desenvolvimento na China das últimas décadas em busca de possibilidades de intervenção política e uma perspectiva de esquerda sobre as lutas e a revolução social. As palavras que concluem este texto e com isso o livro são uma convocatória aos leitores e nos servem aqui igualmente para explicar o que nos motiva divulgar e difundir informações sobre as lutas dos milhões de trabalhadores na China, tão invisibilizados pela mídia corporativista:

“É este o tempo de atacar o modelo da mão de obra barata, as ideias de parceria social e os compromissos do Estado social. A esquerda tem de deixar para trás conceitos como o boicote ao consumo, responsabilidade social das empresas e lobbyismo de esquerda, e assumir uma posição de solidariedade não-paternalista que atravesse as fronteiras físicas e virtuais. O já ultrapassado inter-nacionalismo precisa de ser substituído pela perspectiva de uma classe operária global. Essa classe está ainda separada pela divisão norte-sul, pelos mercados de trabalho nacionais (assim como uma divisão sexista e racista do trabalho dentro desses mesmos mercados) e ao longo das cadeias globais de migração, mas a onda de lutas global cria a oportunidade para atacar e abolir essas fronteiras a partir de baixo.

O capital global foi para a China, formando uma coligação com um Estado-Partido que tentou sobreviver e defender o seu domínio. Seguiu-se o conflito, iniciado nas Zonas Econômicas Especiais, ao longo da costa leste da China e segue agora as rotas da realocação do capital na China central e oeste. Se a pressão vinda de baixo aumentar e forçar o regime a fazer mais concessões – como nos últimos anos – e se a crise global se intensificar e alvoroçar a China, as lutas sociais poderão alcançar um nível global, fundir-se com as revoltas de outros lados, e atrapalhar os projetos capitalistas de gestão da crise. Muitas vezes, as lutas sociais não têm reivindicações políticas – quer na China, quer noutros lados – mas se formarem um movimento de massas poderão romper a rede capitalista de exploração e repressão e abrir a porta para um mundo para lá das relações capitalistas. Esse processo poderá ter agora começado e, certamente, as lutas na China desempenharão um papel fundamental na determinação da sua direção e resultados.

Juntemo-nos!


Nota:

1 Além das lutas de trabalhadores urbanos, migrantes e de mulheres, a China evidenciou, nos últimos trinta anos, também uma séria de importantes lutas no campo protagonizadas pelo campesinato. Campesinos continuam o maior grupo social na China e têm lutado contra a corrupção e o despotismo das elites locais rurais, contra a tomada de suas terras (“land-grabbing”) e outros ataques a suas vidas. Um artigo que trata dessas lutas, além de outros textos não publicados neste livro, será publicado online em: http://www.gongchao.org/pt/pagina-principal.

 

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