As transformações da resistência dos trabalhadores

Eli Friedman (2012)

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A classe operária chinesa interpreta um papel semelhante ao de Janus no imaginário político do neoliberalismo. Por um lado, é concebida como a competitiva vencedora da globalização capitalista, a potência conquistadora cuja ascensão representa a derrota das classes trabalhadoras do mundo desenvolvido. Que esperança há para as lutas dos trabalhadores de Detroit ou Rennes quando o migrante do Sichuan se contenta em trabalhar por uma fração do preço?

Ao mesmo tempo, os trabalhadores chineses são representados como as pobres vítimas da globalização, como a consciência pesada dos consumidores do Primeiro Mundo. Na sua labuta, passivos e explorados, sofrem estoicamente pelos nossos iPhones e toalhas de banho. E apenas nós podemos salvá-los, absorvendo a sua torrente de exportações, ou benevolamente promovendo campanhas pelo seu tratamento humanamente digno às mãos das “nossas” multinacionais.

Para algumas das partes da esquerda do mundo desenvolvido, a moral destas narrativas que se opõem é que, nas nossas sociedades, a resistência laboral foi remetida ao caixote do lixo da história. Tal resistência é, antes de mais, perversa e decadente. O que legitima as significativas reivindicações dos mimados trabalhadores do Norte, com os seus “problemas do Primeiro Mundo”, exigindo de um sistema que já tanta abundância lhes oferece, concedida pelos desgraçados da Terra? E, em qualquer dos casos, a resistência contra tão representativa ameaça competitiva será, certamente, fútil.

Representando os trabalhadores chineses como os Outros – enquanto subalternos abjetos ou antagonistas competitivos – este retrato falha redondamente na exposição da realidade do trabalho na China atual. Longe de serem vencedores triunfantes, os trabalhadores chineses sofrem as mesmas pesadas pressões competitivas que os trabalhadores ocidentais, frequentemente às mãos dos mesmos capitalistas. Mais importante ainda, é dificilmente o seu estoicismo que os distingue de nós.

A China é o epicentro da agitação do trabalho global

Hoje, a classe operária chinesa está em luta. Em mais de trinta anos do projeto de reforma de mercado do Partido Comunista, a China é, inquestionavelmente, o epicentro da agitação do trabalho global. Apesar de não haver estatísticas oficiais, é certo que milhares, se não mesmo dezenas de milhares de greves têm lugar todos os anos. Todas elas são greves arriscadas – o conceito de greve legal é inexistente na China. Assim, num dia típico, qualquer coisa como meia dúzia a várias dúzias de greves terão, provavelmente, lugar.

É da maior importância salientar que os trabalhadores estão a ganhar, com muitos grevistas a conquistar grandes aumentos salariais acima e para além de quaisquer requisitos legais. A resistência operária tem sido um sério problema para o Estado e capital chineses e, como nos Estados Unidos em 1930, o governo central viu-se obrigado a aprovar uma série de leis de trabalho. Os salários mínimos têm tido aumentos na casa dos dois dígitos em várias cidades do país e muitos trabalhadores estão a receber os pagamentos de seguros sociais pela primeira vez.

A agitação laboral tem registado crescimento nas duas últimas décadas, e os últimos dois anos, por si só, representaram um avanço qualitativo na natureza das lutas laborais.

Mas se há lições para a esquerda do norte na experiência dos trabalhadores chineses, encontrá-las exige um exame das condições únicas que estes trabalhadores enfrentam – condições que hoje são causa tanto para um grande otimismo, como para um grande pessimismo.

Catálogo de táticas de resistência laboral

Ao longo destas duas décadas de insurgências, um catálogo relativamente coerente de táticas de resistência laboral emergiu. Quando surge uma queixa, o primeiro passo dos trabalhadores é frequentemente o de falar diretamente com as administrações. Estas solicitações são quase sempre ignoradas, especialmente quando se encontram relacionadas com questões salariais. As greves, por outro lado, funcionam. Mas estas nunca são organizadas pelos sindicatos chineses oficiais, que se encontram formalmente subordinados ao Partido Comunista, sendo geralmente controlados pela administração ao nível da empresa. Todas as greves na China são organizadas de forma autónoma e frequentemente em oposição direta ao sindicato oficial, que encoraja os trabalhadores a resolver as suas queixas através dos mecanismos legais.

O sistema legal, que compreende mediação do local de trabalho, intermediação e processos judiciais, tenta individualizar o conflito. Este facto, combinado com o conluio entre estado e capital, traduz-se na incapacidade geral do sistema na resolução das queixas dos trabalhadores. Está projetado, em grande medida, para prevenir as greves.

Até 2010, o motivo mais comum de greve era o não-pagamento dos salários. A reivindicação nestas greves é clara e direta: paguem-nos os salários a que temos direito. As reivindicações de melhorias acima e para além da lei existente eram raras. Sendo que as violações legais eram e continuam a ser endémicas, tem havido solo fértil para a existência destas lutas defensivas. As greves começam geralmente com os trabalhadores a pousar os seus instrumentos de trabalho e a permanecer dentro da fábrica, ou pelo menos nas suas imediações. Surpreendentemente, os fura-greves são pouco utilizados na China, e por isso os piquetes raramente são usados.1

Quando confrontados com uma administração recalcitrante, ocasionalmente os trabalhadores demarcam-se levando a luta para a rua. Esta tática é dirigida ao governo: afetando a ordem pública, atraem imediatamente a atenção do Estado. Por vezes os trabalhadores marcham até às instalações do governo local ou bloqueiam simplesmente a rua. Tais táticas são arriscadas, uma vez que o governo pode até apoiar os grevistas, mas com igual frequência recorre à violência. Mesmo que seja atingido um compromisso, as manifestações públicas resultarão frequentemente na detenção, espancamento e prisão dos organizadores da greve.

Mais arriscado, e ainda comum, é a sabotagem e destruição de propriedade, a organização de motins, o assassínio dos patrões e confrontos físicos com a polícia. Tais táticas parecem ter uma maior prevalência na resposta a despedimentos em massa ou falências. Uma série de confrontos particularmente intensos teve lugar em finais de 2008 e inícios de 2009, em resposta a despedimentos em massa no sector de processamento de exportações, devido à crise económica ocidental. Como explicarei mais adiante, os trabalhadores poderão estar agora a desenvolver uma consciência antagónica em relação à polícia.

Mas o item menos espetacular deste catálogo de resistência constitui o pano de fundo essencial a todos os outros: os migrantes têm vindo a recusar, em número crescente, os maus empregos nas zonas de processamento de exportações no sudeste, aos quais costumavam acorrer em massa.

Uma insuficiência na mão-de-obra verificou-se pela primeira vez em 2004, e num país que continua a ter mais de 700 milhões de residentes rurais, muitos assumiram que se trataria de uma casualidade de curto-prazo. Oito anos depois, é clara a ocorrência de uma mudança estrutural. Os economistas lançaram-se num intenso debate acerca das causas desta insuficiência, debate esse que não recapitularei aqui. Será suficiente dizer que uma grande parte dos fabricantes nas províncias costeiras, tais como Guangdond, Zheijang e Jiangsu, não têm sido capazes de atrair e manter trabalhadores.

Independentemente de razões específicas, o ponto a salientar é que esta insuficiência conduziu a um aumento salarial e consolidou o poder dos trabalhadores no mercado – vantagem essa que estes têm vindo a explorar.

Ponto de viragem no verão de 2010

Um ponto de viragem foi registado no verão de 2010, marcado por uma importante onda de greves que se iniciou numa fábrica de transmissão da Honda em Nanhai.

Desde então, tem havido uma mudança na natureza da resistência laboral, desenvolvimento esse notado por muitos analistas. Ainda mais importante, as reivindicações dos trabalhadores passaram a ser feitas de uma perspetiva mais ofensiva. Os trabalhadores têm pedido aumentos salariais acima e para além daquilo a que legalmente têm direito e em muitas greves têm começado a exigir a eleição dos seus representantes sindicais. Não têm sido convocados sindicatos independentes não pertencentes à Federação de Sindicatos da China, uma vez que tal certamente incitaria repressão estatal. Mas a insistência na exigência de eleições representa o germinar de reivindicações políticas, ainda que esta reivindicação seja feita apenas ao nível da empresa.

A onda de greves explodiu em Nanhai, onde durante semanas os trabalhadores tinham vindo a queixar-se dos baixos salários, discutindo a ideia de uma paralisação. A 17 de maio de 2010, quase todos desconheciam que um único empregado – o qual vários relatos entretanto apelidaram de Tan Zhiqing, um pseudónimo – convocaria a greve por sua própria iniciativa, premindo, muito simplesmente, o botão de paragem de emergência, desligando ambas as linhas de produção da fábrica.

Os trabalhadores saíram da fábrica. Nessa mesma tarde, a administração suplicava-lhes que voltassem ao trabalho e abrissem negociações. A produção foi, de facto, retomada nesse dia. Mas os trabalhadores haviam formulado a sua reivindicação inicial: um aumento salarial de 800 renminbis por mês, correspondente a um aumento de 50% para os trabalhadores permanentes.

Mais exigências se seguiram: a “reorganização” do sindicato oficial da empresa, que na prática não oferecia qualquer apoio à luta dos trabalhadores, bem como a readmissão de dois trabalhadores despedidos. Aquando das negociações, os trabalhadores saíram novamente para a rua, e, após uma semana de greve, todas as fábricas de montagem da Honda na China tinham fechado devido à falta de peças.

Entretanto, as notícias da greve de Nanhai começaram a gerar uma onda de agitação que se alastrou aos trabalhadores industriais de todo o país. As manchetes dos jornais chineses contaram a história: “Uma Onda é Maior que a Próxima, a Greve irrompe também na fábrica de Fechaduras da Honda”; “Onda de Greves em Dalian com 70 Mil Participantes, Afetando 73 Empresas, Termina Com Aumentos Salariais na Ordem dos 34,5%”; “Greves Salariais na Honda São um Choque para o Modelo de Fabrico Barato.” Em cada greve, a principal reivindicação foi a de aumentos salariais, embora em muitos casos tenham sido ouvidas exigências no sentido da reorganização sindical – um desenvolvimento político de grande importância.

Uma destas greves de contágio foi especialmente notável pela sua militância e organização. Durante o fim-de-semana de 19 a 20 de junho, um grupo de cerca de duzentos trabalhadores da Denso, uma empresa de peças automóveis detida por particulares japoneses, fornecedora da Toyota, encontrou-se secretamente para debater planos de ação. Nesta reunião, delinearam a estratégia dos “três nãos”: durante três dias não haveria trabalho, exigências ou representantes.

Estes trabalhadores sabiam que interrompendo a cadeia de abastecimento, a fábrica de montagem da Toyota seria obrigada a fechar numa questão de dias. Comprometendo-se a fazer greve durante três dias sem exigências, previram perdas crescentes para as maiores cadeias de produção, tanto da Denso como da Toyota.

O seu plano funcionou. Na segunda-feira de manhã, iniciaram a greve saindo da fábrica e impedindo a saída dos camiões da mesma. À tarde, outras seis fábricas na mesma zona industrial tinham fechado e, no dia seguinte, a falta de peças forçou ao encerramento da fábrica de montagem da Toyota.

No terceiro dia, tal como haviam planeado, os trabalhadores elegeram vinte e sete representantes e entraram em negociações com a exigência central de um aumento salarial de 800 renminbis. Após três dias de conversações, onde o CEO da Denso, vindo do Japão, esteve envolvido, foi anunciada a conquista do aumento salarial de 800 renminbis.

Se o verão de 2010 foi caracterizado pela resistência radical mas relativamente ordeira ao capital, o verão de 2011 gerou duas insurreições massivas contra o Estado.

Na mesma semana, em Junho de 2011, enormes motins de trabalhadores agitaram as áreas fabris suburbanas de Chaozhou e Guangszhou, em ambos os casos conduzindo a uma alargada e altamente direcionada destruição de propriedade. Na cidade de Guxiang, Chaozhou, um trabalhador do Sichuan exigindo a devolução de salários foi brutalmente atacado por mercenários portadores de armas brancas e pelo seu ex-patrão. Reagindo a isto, milhares de outros migrantes começaram a manifestar-se junto das instalações do governo local, muitos dos quais haviam sofrido anos de discriminação e exploração por parte de patrões que trabalhavam em conluio com oficiais.

O protesto foi, supostamente, organizado por uma “associação cidadã” de pessoas do Sichuan, vagamente organizada – uma dessas organizações tipo máfia que proliferam em ambientes onde a associação livre não é permitida. Após terem cercado as instalações governamentais, os migrantes rapidamente dirigiram a sua fúria contra os residentes locais, sentindo que estes os haviam discriminado. Após terem incendiado dúzias de carros e saqueado lojas, a polícia armada foi forçada a abafar o motim e dispersar os locais que se haviam organizado em grupos de vigilância.

Apenas uma semana mais tarde, uma insurreição ainda mais surpreendente teve lugar nos subúrbios de Guangzhou em Zengcheng. Uma mulher grávida do Sichuan, apregoando mercadorias na rua, foi abordada pela polícia e violentamente atirada ao chão. Os rumores de que ela teria sofrido um aborto em consequência da altercação começaram a circular imediatamente entre os trabalhadores fabris da zona; a veracidade ou não destes rumores rapidamente se tornou irrelevante.

Enraivecidos por outro incidente de agressão policial, os trabalhadores indignados amotinaram-se por toda a parte em Zengcheng durante vários dias, incendiando uma esquadra, enfrentando a polícia de choque, e bloqueando uma autoestrada nacional. Segundo relatos, outros migrantes do Sichuan da área de Guangdong afluíram a Zengcheng para se juntar aos motins. No final, o Exército de Libertação Popular foi convocado para pôr um fim à insurreição, disparando munições reais sob as pessoas que protestavam. Apesar de o governo o negar, é provável que tenha havido vítimas mortais.

Em apenas alguns anos, a resistência laboral passou de defensiva a ofensiva. Incidentes aparentemente insignificantes desencadearam insurreições em massa, indicativas da cólera generalizada. E a continuada falta de mão-de-obra nas áreas costeiras aponta para mudanças estruturais mais profundas que provocaram, também elas, mudanças na dinâmica das políticas laborais.

Tudo isto constitui um sério desafio ao modelo de desenvolvimento baseado nas exportações e repressão salarial que caracterizou a economia política das regiões costeiras do sudeste chinês durante mais de duas décadas. Por volta do fim da onda de greves de 2010, os comentadores dos media Chineses declaravam que a era do trabalho barato tinha chegado ao fim.

Embora vitórias tão significativas sejam motivo de otimismo, a despolitização enraizada significa que os trabalhadores não podem extrair muita satisfação das mesmas. Qualquer tentativa de articulação de uma política explícita por parte dos trabalhadores é instantaneamente esmagada efetivamente pela Direita e pelos seus aliados estatais, através da ameaça do espectro do “Senhor do Desgoverno”: querem mesmo regressar ao caos da Revolução Cultural?

Se no Ocidente “não há alternativa”, na China as duas alternativas oficiais são uma tecnocracia capitalista eficiente e sem obstáculos (a fantasia de Singapura) ou uma violência política absoluta, selvagem e profundamente irracional. Como resultado, os trabalhadores submetem-se conscientemente à segregação das lutas políticas e económicas imposta pelo Estado, apresentando as suas reivindicações como económicas, legais e de acordo com a embrutecedora ideologia de “harmonia”. Agir de outra maneira desencadearia uma dura repressão estatal.

Talvez os trabalhadores consigam um aumento salarial numa fábrica, seguros sociais noutra. Mas esta espécie de insurgência dispersa, efémera e não-subjetivada falhou na cristalização de formas duradouras de organização contra-hegemónica, capaz de coagir o Estado ou o capital ao nível da classe.

O resultado é que, quando o Estado intervém em nome dos trabalhadores – quer através do apoio de reivindicações imediatas durante as negociações da greve, quer através da aprovação de legislação que vise a melhoria das suas condições materiais – a sua imagem de “leviatã benevolente” é reforçada: agiu de tal maneira não porque os trabalhadores assim o exigiram, mas porque se preocupa com os “grupos frágeis e em desvantagem” (assim são designados os trabalhadores no léxico oficial).

No entanto é apenas através da separação ideológica ao nível simbólico entre a causa e o efeito que o Estado é capaz de manter a farsa de que os trabalhadores são, de facto, “fracos”. Dado o relativo sucesso deste projeto, a classe trabalhadora é política, mas é alienada da sua própria atividade política.

Migrantes – a nova classe trabalhadora

É impossível compreender como é que esta situação se mantém sem entender a posição política e social da atual classe trabalhadora. O trabalhador chinês de hoje em dia está longe dos proletários heróicos e hiper-masculinizados dos cartazes de propaganda da Revolução Cultural. No setor público, os trabalhadores nunca foram realmente “donos da empresa”, como é alegado pelo Estado. Mas era-lhes garantido emprego duradouro e a sua unidade de trabalho suportava também o custo de reprodução social, providenciando habitação, educação, assistência médica, pensões e até serviços fúnebres e de casamento.

Nos anos 90, o governo central deu início a um esforço massivo de privatização, redução ou cortes da subsidiação de muitas empresas detidas pelo Estado, o que conduziu a importantes deslocações sociais e económicas na zona industrial do nordeste chinês (“Rust Belt”). Embora as condições materiais para os trabalhadores nas empresas ainda detidas pelo Estado continuem a ser melhores em termos relativos, hoje a gestão dessas firmas encontra-se em crescente concordância com a lógica de maximização de lucros.

De maior interesse imediato é a nova classe trabalhadora, composta por migrantes rurais que acorreram em massa às cidades do sudeste chinês (“Sun Belt”). Com a transição para o capitalismo iniciada em 1978, os agricultores obtiveram, a princípio, bons resultados, uma vez que o mercado atribuía preços mais elevados do que o Estado aos bens agrícolas. Porém, em meados dos anos 80, estes ganhos começaram a ser arrasados pela inflação desenfreada, começando a população rural a procurar novas fontes de rendimento. À abertura da China à produção orientada para a exportação nas regiões costeiras do sudeste, correspondeu a transformação destes agricultores em trabalhadores migrantes.

Ao mesmo tempo, o Estado descobriu que uma série de instituições herdadas da economia de comando eram úteis ao reforço da acumulação privada. Entre estas, a que mais se destacava era o sistema de registo de residência (hukou), que vinculava os benefícios sociais do indivíduo a um determinado local. O hukou é um instrumento de administração complexo e cada vez mais descentralizado, mas o aspeto a sublinhar é que institucionaliza uma separação geográfica e social entre as atividades produtivas e reprodutivas do trabalhador migrante – entre a sua vida profissional e a sua vida doméstica e familiar.

Esta separação modelou todos os aspetos das lutas laborais dos trabalhadores migrantes. Os migrantes jovens vão para as cidades trabalhar em fábricas, restaurantes, locais de construção, para se envolver na delinquência, vender comida nas ruas ou ganhar a vida como trabalhadores sexuais. Porém, o Estado nunca fingiu que estes migrantes são formalmente iguais aos residentes urbanos, ou que são bem-vindos a longo prazo. Os migrantes não têm acesso a nenhum dos serviços públicos a que os residentes urbanos têm direito, incluindo assistência médica, habitação e educação. Necessitam de permissão oficial para estar na cidade, e durante os anos 90, início dos anos 2000, houve várias ocorrências de migrantes detidos, espancados e “deportados” por não terem documentos. Durante pelo menos uma geração, o principal objetivo dos trabalhadores migrantes foi o de ganhar o máximo possível de dinheiro antes de regressar à sua aldeia, com 20 e poucos anos, para casar e constituir família.

Outras disposições formais asseguram que os migrantes não sejam capazes de ter uma vida na cidade. O sistema de seguros sociais (incluindo seguros de saúde, pensões, seguro de desemprego, seguro de maternidade e seguro de acidentes no trabalho) é organizado ao nível municipal. Isto significa que os migrantes que têm a sorte suficiente de possuir um seguro social suportado pela entidade empregadora – uma pequena minoria – pagam por um sistema ao qual jamais terão acesso. Se as pensões não são transferíveis, porque é que um migrante exigiria o seu aumento? As reivindicações dos trabalhadores focam-se muito racionalmente, portanto, nas questões salariais mais imediatas.

Assim, subjetivamente, os migrantes não se referem a si próprios como “trabalhadores”, nem pensam em si como pertencendo à “classe trabalhadora”. São, isso sim, mingong, ou trabalhadores-camponeses, e dedicam-se a “vender trabalho” (dagong), ao invés de terem uma profissão ou carreira. O carácter temporário desta relação com o trabalho é, talvez, a norma sob o signo do capitalismo neoliberal, mas as taxas de rotação em muitas fábricas chinesas são surpreendentes, excedendo muitas vezes os 100% por ano.

As implicações para a dinâmica da resistência laboral têm sido enormes. Por exemplo, há poucos registos de lutas relacionadas com a duração do dia de trabalho. Porque é que os trabalhadores quereriam passar mais tempo numa cidade que os rejeita? O “equilíbrio entre vida profissional e vida pessoal” inerente a este tipo de discurso nada significa para um trabalhador migrante de 18 anos labutando numa fábrica suburbana de Shanghai. Na cidade, os migrantes vivem para trabalhar – não no sentido de auto-realização mas no sentido literal. Se um trabalhador assume que está apenas a ganhar dinheiro para eventualmente o levar de volta para casa, há poucas razões (ou oportunidades) para pedir mais tempo na cidade.

Outro exemplo: todos os anos, imediatamente antes do Ano Novo Chinês, o número de greves no sector de construção explode. Porquê? Este feriado é a única altura do ano em que a maior parte dos migrantes regressa às suas terras de origem, e é geralmente a única altura em que podem ver os seus familiares, muitas vezes incluindo cônjuges e filhos. Os trabalhadores do sector de construção são geralmente pagos apenas quando um projeto é terminado, mas o não-pagamento de salários tem sido endémico desde a desregulação da indústria nos anos 80. A ideia de regressar à terra-natal de mãos a abanar é inaceitável para os trabalhadores, uma vez que a única razão pela qual partiram para a cidade foi a promessa de salários marginalmente mais altos. Daí as greves.

Por outras palavras, os trabalhadores migrantes não têm tentado ligar as lutas na esfera da produção a lutas relativas a outros aspetos da sua vida ou problemas sociais mais vastos. Encontram-se separados da comunidade local e não têm qualquer direito a falar enquanto cidadãos. As reivindicações salariais não se multiplicaram em reivindicações por menos tempo de trabalho, por melhores serviços sociais, ou por direitos políticos.

Deslocação das indústrias para a China central e ocidental

O capital, entretanto, tem confiado em vários métodos comprovados para melhorar a rentabilidade. No espaço da fábrica, o maior desenvolvimento dos últimos anos será, certamente, sombriamente familiar aos trabalhadores americanos, europeus ou japoneses: o crescimento explosivo de vários tipos de trabalho precário, incluindo trabalhadores temporários, estudantes estagiários e, sobretudo, “trabalhadores temporários.”

Os trabalhadores temporários são empregados diretamente por uma empresa contratante – muitas das quais são detidas pelas agências de emprego locais – que depois os “enviam” para os locais onde serão postos a trabalhar. Isto tem o efeito óbvio de obscurecer a relação de emprego e melhorar a flexibilidade para o capital. O trabalho temporário constitui agora uma enorme percentagem da força de trabalho (muitas vezes superior a 50% num dado local de trabalho) numa amostra incrivelmente diversa de indústrias, incluindo indústrias de transformação, energia, transportes, operações bancárias, assistência médica, saneamento, e serviços. A tendência emergiu em empresas estrangeiras e internas privadas, empreendimentos conjuntos e empresas detidas pelo estado.

No entanto, a grande história dos últimos anos tem sido a da deslocação do capital industrial das regiões costeiras para a China central e ocidental. Há enormes consequências sociais e políticas que ocorrem deste “ajuste geográfico”, concedendo à classe trabalhadora uma nova e potencialmente transformadora série de possibilidades. A realização ou não destas possibilidades é obviamente uma questão que só poderá ser resolvida na prática.

O caso da Foxconn, a maior empregadora privada da China, é instrutivo neste aspeto. A Foxconn mudou-se do seu local de origem na Tailândia para a costeira Shenzhen há mais de uma década, mas na sequência dos suicídios de trabalhadores em 2010 e do continuado escrutínio público do seu ambiente laboral altamente militarizado e alienante, é agora forçada a mudar-se uma vez mais. A empresa encontra-se atualmente no processo de redução da sua força de trabalho em Shenzen, tendo construído novas instalações massivas nas províncias do interior. As duas maiores situam-se nas capitais de província Zhengzhou e Chengdu.

Não é difícil compreender o poder de atração que o interior exerce sobre tais companhias. Embora os salários em Shenzhen e outras áreas costeiras continuem a estar bastante abaixo dos padrões globais (menos de 200 dólares por mês), os salários nas províncias do interior como Henan, Hubei e Sichuan podem atingir quase metade desse valor. Muitos empregadores assumem também, e talvez corretamente, que mais migrantes se encontrarão disponíveis perto da fonte de origem, e um mercado de trabalho menos regulado tem também vantagens políticas imediatas para o capital. Também esta é uma história familiar do capitalismo: o historiador do trabalho Jefferson Cowie identificou um processo de trabalho semelhante na história da “procura de 70 anos por trabalho barato” da industrial de eletrónica RCA – uma procura que levou a companhia de Nova Jérsia para o Indiana, de Indiana para o Tennessee e, finalmente, do Tennessee para o México.

Se a região costeira chinesa facultou condições sociais e políticas extremamente favoráveis ao capital transnacional nas duas últimas décadas, as coisas serão diferentes no interior. O antagonismo entre trabalho e capital poderá ser universal, mas o conflito de classes avança no terreno das particularidades.

Então quais são as particularidades do interior chinês, e porque poderão elas constituir razão para um otimismo cauteloso? Enquanto que os migrantes nas regiões costeiras são necessariamente temporários – e as suas lutas, portanto, efémeras – no interior têm a possibilidade de estabelecer uma comunidade resistente e duradoura. Teoricamente, isto significa que há uma maior possibilidade de fundir as lutas nas esferas da produção e da reprodução, algo que não era possível quando estas duas arenas se encontravam geograficamente separadas.

Consideremos a problemática do hukou, o registo de residência. As enormes megalópoles do leste para as quais os migrantes acorreram em massa no passado têm restrições muito fortes na obtenção de residência local. Mesmo os trabalhadores em cargos de administração e gestão com graus académicos poderão ter dificuldades em obter um hukou em Pequim.

Porém, as cidades mais pequenas no interior colocaram a fasquia muito mais baixa na obtenção de residência local. Apesar de ser assumidamente especulativo, vale a pena refletir nas mudanças que este fator pode trazer às dinâmicas de resistência laboral. Se antes a suposta trajetória de vida do migrante era a de ir trabalhar para a cidade durante uns anos para ganhar dinheiro antes de regressar a casa e começar uma família, os trabalhadores no interior poderão ter em seu poder uma perspetiva bem diferente. Subitamente já não estão apenas a “trabalhar”, mas também a “viver” num determinado lugar.

Isto implica que os migrantes se encontrarão muito mais propensos à instalação permanente nos seus locais de trabalho. Quererão encontrar cônjuges, ter a sua própria habitação, ter filhos, mandá-los para a escola – em suma, dedicar-se à reprodução social.

Anteriormente, os empregadores não eram obrigados a pagar aos trabalhadores migrantes um salário que lhes permitisse sobreviver condignamente, não havendo quaisquer pretensões de que isto devesse ser esperado, sendo claro que os trabalhadores regressariam às suas aldeias e aí se instalariam. Mas no interior, os migrantes exigirão muito provavelmente tudo aquilo que é necessário à condução de uma vida decente – habitação, assistência médica, educação, e alguma proteção contra os riscos de desemprego e na velhice. Poderão também querer tempo para si próprios e para a sua comunidade, uma exigência que tem estado conspicuamente ausente até hoje.

Isto levanta a possibilidade da politização da agitação laboral. Serviços públicos decentes nunca foram uma expectativa realista dos migrantes na costa. Porém, se conseguirem estabelecer direitos de residência no interior, as reivindicações por serviços sociais poderão facilmente generalizar-se, concedendo a oportunidade de escapar ao isolamento das lutas no local de trabalho. As reivindicações de proteção social são, por natureza, mais propensas a ser direcionadas ao estado do que a empregadores individuais, estabelecendo a base simbólica para um confronto passível de generalização.

Embora seja fácil romancear a corajosa e por vezes espetacular resistência dos trabalhadores migrantes, a realidade é que a resposta mais frequente às más condições de trabalho tem sido simplesmente a demissão e procura de um novo emprego, ou mesmo o regresso a casa. Também isto se poderá alterar se trabalharem onde vivem. Estas novas condições poderão ser propícias à resistência e luta dos migrantes pela comunidade e na comunidade, ao invés de simplesmente procederem à fuga.

A biografia dos trabalhadores no interior poderá também apresentar oportunidades para uma militância reforçada. Muitos destes migrantes têm experiência prévia de trabalho e luta em regiões costeiras. Trabalhadores mais velhos poderão carecer da paixão militante da juventude, mas a sua experiência em lidar com patrões exploradores e os seus aliados estatais poderá ser um recurso de valor inestimável.

Finalmente, os trabalhadores terão recursos sociais mais alargados ao seu dispor. Em grandes cidades costeiras, seria pouco provável que conseguissem granjear a simpatia dos residentes locais, um facto tornado dolorosamente claro nos motins de Guxiang. No interior, porém, os trabalhadores poderão ter a família e os amigos perto, pessoas que não estão apenas predispostas a tomar o partido do trabalho mas que poderão depender de forma muito direta do aumento dos salários e melhoria dos serviços sociais. Este facto concede a possibilidade de expandir as lutas para além do local de trabalho, incorporando problemas sociais mais alargados.

Novas oportunidades para a classe trabalhadora chinesa

Poderá haver quem na Esquerda seja acérrimo defensor da resistência permanente em e por si mesma. E a disposição formal de conflitos de classe que tem prevalecido na China tem causado consideráveis ruturas na acumulação de capital.

Mas os trabalhadores são alienados da sua própria atividade política. Uma assimetria profunda existe: os trabalhadores resistem intermitentemente e sem qualquer estratégia, enquanto que o Estado e o capital reagem a esta crise de forma auto-consciente e coordenada.

Até ver, esta fragmentada e efémera forma de luta tem sido incapaz de produzir qualquer mossa considerável nas estruturas básicas do partido único e da sua ideologia dominante. E o capital, enquanto tendência universal, tem provado a sua habilidade na subjugação de particularidades de militância vezes sem conta.

Se a resistência laboral militante força simplesmente o capital a destruir uma classe trabalhadora e a produzir uma outra (antagonista) em qualquer outro lugar, poderemos realmente considerar isto uma vitória? A nova fronteira da acumulação de capital apresenta à classe trabalhadora chinesa oportunidades para o estabelecimento de formas de organização mais resistentes, capazes de expandir o domínio da luta social e de formular amplas reivindicações políticas. Mas até isso acontecer, permanecerá meio passo atrás do seu – e nosso – antagonista histórico.


Nota

1 Não é imediatamente percetível porque é que os empregadores raramente recorrem à utilização dos fura-greves. Uma explicação possível é que o governo não apoiaria tal medida, uma vez que poderia aumentar tensões e conduzir a violência ou maiores ruturas sociais. Outro fator poderá ser, muito simplesmente, a curta duração das greves (raramente duram mais do que um ou dois dias), uma vez que os grevistas não têm o apoio institucional de um sindicato e são muitas vezes submetidos a pressões intensas por parte do Estado. O resultado é que talvez haja menos precisão de fura-greves por parte dos empregadores.

 

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